INTRODUÇÃO
A Fasceíte Necrotizante (FN) é uma doença bacteriana, rapidamente progressiva, caracterizada por extensa necrose de pele, tecido subcutâneo, fáscias e músculo (1). Descrita pela primeira vez por Jones na Guerra Civil Americana no século IX como uma complicação bacteriana das feridas por arma de fogo, ela é uma doença potencialmente fatal (2).
A Fasceíte Necrotizante prevalece na população adulta em relação à pediátrica e algumas desordens sistêmicas e fatores locais como alcoolismo, diabetes, uso drogas intravenosas, imunossupressão, alterações dentárias, pequenos traumas, foliculites; estão associados a esta doença (3,4).
Os locais mais comumente acometidos são a parede abdominal, as extremidades, pélvis e parede torácica, sendo menos comum na região da cabeça e pescoço (1).
No estágio inicial a infecção esta localizada na fáscia superficial. A evolução ocorre com a trombose de pequenos e médios vasos sanguíneos sendo que nessa fase a pele torna-se eritematosa e edematosa desenvolvendo vesículas e apresentando-se com o aspecto de "casca de laranja". Devido a perfusão inadequada a pele posteriormente torna-se isquêmica e necrótica. O envolvimento muscular é raro e quando acometido sugere infecção por Clostridium sendo denominada Mionecrose Clostridial (5).
Os patógenos envolvidos na fasceite necrotizante são heterogêneos e compreendem bactérias aeróbias e anaeróbias. Os microorganismos mais freqüentemente isolados são
Streptococcus pyogenes (grupo A) e
Staphilococcus aureus, os quais produzem toxinas e enzimas que ativam colagenases e hiluronidases levando à necrose dos tecidos subcutâneos. As bactérias anaeróbias como Clostridium, Bacterióides e Fusobactérias são responsáveis pela produção gás e fermentação dos tecidos (1).
O exame anatomopatológico é o método diagnóstico mais preciso para identificação precoce da doença. A tomografia computadorizada com contraste é importante para verificar a extensão da doença, a relação com estruturas anatômicas, localização sítio primário da infecção. As principais complicações desta doença são mediastinite, pericardite, choque séptico, obstrução respiratória, erosão arterial e trombose veia jugular.
O debridamento cirúrgico, agressivo e precoce, além de antibioticoterapia de amplo espectro e suporte hemodinâmico são essenciais para o tratamento. Quando o procedimento cirúrgico é realizado antes de 48 horas a partir do diagnóstico a taxa de sobrevivência é superior a 75% (6).
RELATO DO CASO
Paciente 2 meses de idade, sexo masculino, branco, foi trazido à Emergência do Hospital de Base / FAMERP com história de abaulamento cervical à direita associado à irritabilidade e febre (não aferida) com 1 dia de evolução. A mãe do lactente negou que o mesmo havia apresentado episódio de IVAS, trauma ou qualquer outra alteração. Relatava que a criança havia nascido de parto cesário com 39 semanas e 5 dias, apgar 9/10, peso 2840g. Alimentava-se de leite materno exclusivo, as vacinações estavam em dia e era acompanhado periodicamente pelo pediatra.
Ao exame físico a criança apresentava-se em bom estado geral, eupneica, corada, hidratada e febril (T = 38,5oC). À rinoscopia, oroscopia e otoscopia não mostravam alterações. Na inspeção e palpação cervical evidenciou-se abaulamento cervical em áreas I, II, III e IV à direita de, aproximadamente, 5 x 5cm de diâmetro, com limites mal definidos, hiperemia, dor e calor local. A mímica facial estava preservada.
Mediante a esse quadro foi feita à hipótese diagnóstica de abscesso cervical profundo e a criança foi internada com antibioticoterapia endovenosa: Cefalotina (100mg/Kg/dia) e Amicacina (15mg/Kg/dia), associados a antiinflamatório hormonal: Dexametasona (0,15mg/Kg/dose) e com analgésicos (Dipirona). Também foram solicitados exames laboratoriais que revelaram linfopenia relativa e absoluta com 5.900 leucócitos (VN > 11.000), sendo 68% segmentados e 22% linfócitos típicos, e elevação da proteína C reativa (PCR) com valor de 20mg/dl (VN = 0 a 1 mg/dl).
No 2º dia de internação (DI), o paciente foi submetido à drenagem cirúrgica com saída de secreção purulenta (enviada para cultura) e debridamento de áreas musculares desvitalizadas (enviadas para avaliação anatomopatológica).
No 3º DI o paciente evoluiu com sinais de sofrimento de pele em ferida operatória (Figura 1) e optou-se juntamente com o Serviço de Pediatria pela troca da Cefalotina por Clindamicina, debridamento cirúrgico das áreas teciduais desvitalizadas, cuja avaliação anatomopatológico revelou tecido fibro-adiposo e muscular com extensa área de necrose, compatível com fasceíte necrotizante. Diante deste quadro, o paciente foi transferido para a UTI Pediátrica onde permaneceu por 33 dias.
Figura 1. Região cervical com sinais de sofrimento de pele.
Neste período, foram realizados mais quatro debridamentos cirúrgicos (7º, 9º, 14º e 16º DI) permanecendo a ferida operatória aberta com exposição da musculatura da região cervical direita (Figura 2).
Figura 2. Ferida operatória pós debridamento cirúrgico com exposição de estruturas cervicais
.
No 4º DI o Serviço de Pediatria orientou a mudança da antibioticoterapia para Vancomicina, Cefepime utilizados por 22 dias e Metronidazol por 12 dias (baseados no crescimento de
Streptococus viridans e
Pseudomonas aeruginosa na secreção cervical drenada no 2º DI ).
Diariamente eram realizadas lavagens da ferida com soro fisiológico 0,9% e clorexidine degermante e curativos com placas absorventes (Hidrogel®). Para melhor evolução da cicatrização o paciente também realizou sessões de câmara hiperbárica.
Como intercorrências durante a internação, a criança apresentou paralisia do ramo marginal do nervo facial direito (1º PO de drenagem do abscesso cervical), necessitou de transfusões sanguíneas devido à queda de hematócrito após os debridamentos e de duas intervenções da Cirurgia Pediátrica para correção de hérnia umbilical.
O lactente recebeu alta hospitalar após 42 dias de internação, com a ferida cervical em processo de cicatrização por segunda intenção (Figura 3), orientação de curativos diários com soro fisiológico e permanece em acompanhamento ambulatorial sem grandes alterações funcionais ou estéticas (Figura 4).
Figura 3. Ferida operatória em processo de granulação.
Figura 4. Aspecto final da cicatrização por segunda intenção da ferida operatória.
DISCUSSÃO
A Fasceíte Necrotizante é mais freqüente na população adulta do que pediátrica. Segundo Ricalde et al (5) a diferença mais notável entre adultos e crianças é que quase todos os pacientes pediátricos com fasceíte necrotizante são totalmente saudáveis. O autor encontrou 11 casos de FN cervicofacial em menores de 16 anos descritos na literatura inglesa e todos eram previamente hígidos, como no caso apresentado.
A região da cabeça e pescoço é um local incomum de acometimento. Quando esta região é acometida a infecção é mais freqüente na região cervical anterior (60% dos casos), seguido pela face com acometimento em torno de 17% (1). O paciente do nosso relato apresentava sinais infecciosos em toda região cervical anterior e lateral à direita.
Apesar dos patógenos mais freqüentemente envolvidos na fasceite necrotizante serem o
Streptococcus pyogenes (grupo A) e o
Sthaphilococcus aureus, Lang et al (7) relataram um caso de fasceite necrotizante envolvendo a cabeça e pescoço de lactente de 5 meses de idade no qual foi isolado
Streptococcus grupo B. Nesse trabalho os autores consideraram a prematuridade como um fator de risco e sugeriram uma origem nosocomial para a FN causada por este microorganismo.
No caso apresentado foi isolado o
Streptococcus viridans e em nossa revisão bibliográfica não encontramos nenhum caso, até o momento, no qual fosse isolado esta bactéria.
O exame anatomopatológico confirmou a doença. A tomografia computadorizada não foi realizada no nosso paciente pois ao exame físico, não havia sinais de extensão ou complicação da doença e o paciente vinha apresentando melhora clínica e laboratorial importante.
O debridamento cirúrgico realizado foi agressivo e precoce, além de antibioticoterapia de largo espectro conforme a literatura preconiza.
A terapia coadjuvante com oxigênio hiperbárico permanece controversa. Mohammed et al (8) observou que a mesma pode ser benéfica no estágio inicial da Mionecrose Clostridial, entretanto esse tipo de tratamento pode ser prejudicial devido a bactérias aeróbias serem componentes significativos na infecção dos tecidos moles.
Em nosso relato a ferida operatória do lactente foi tratada com curativos a base de alginato, as quais absorvem o exsudato mantendo o leito da ferida úmido e estimulam o debridamento autolítico. Concomitante, o paciente foi tratado com câmara hiperbárica. A ferida operatória cicatrizou por segunda intenção e o lactente evoluiu com excelente resultado.
CONCLUSÃO
A Fasceíte Necrotizante (FN) cervicofacial é uma doença bacteriana, rapidamente progressiva, caracterizada por extensa necrose da fáscia superficial, tecido subcutâneo, músculos e pele.
Em crianças é uma patologia incomum e o acometimento da região da cabeça e pescoço é infrequente. A detecção precoce e o debridamento cirúrgico agressivo são essenciais para o sucesso terapêutico desses pacientes.
Como terapia adjuvante é imprescindível à utilização de antibioticoterapia de amplo espectro e suporte hemodinâmico.
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