Que médico será você?

Que médico será você?

Dirijo-me, nesta oportunidade, a todos que desejam ser médicos. Tanto aos que pretendem entrar na faculdade, como aos que nela estudam. Faço isto sustentado pela vivência de mais de três décadas dedicadas à prática médica. Sei que a profissão médica tem todos os motivos para despertar interesse. Todas as famílias gostariam de ter um parente médico.
É desses profissionais que necessitamos nos momentos mais difíceis de nossa existência. E a despeito de tantas mudanças comportamentais, a lendária figura vestida de branco nos remete, quando enfermos, a possibilidade de recuperação da saúde, o bem maior. Realmente, é alentador e emocionante ouvir daqueles que tratamos, expressões de gratidão por lhe termos amenizado sofrimentos, curado, salvado a vida.Nesses momentos, mais que em qualquer outros, chegamos à conclusão de que, apesar de tudo, vale a pena ser médico.
Mas nem tudo é reconhecimento e afagos de gratidão nesse penoso caminho do exercício da medicina. Por isto, você que almeja ser médico, não imagine um destino somente glamoroso como o que, às vezes, a ficção mostra. A vida real tem amargores que exige preparo para seu enfrentamento.
Quem, como eu, vem de uma longa caminhada, cumpre seu dever humanístico e ético sinalizando para os que vêem atrás as armadilhas dessa espinhosa estrada. Para que estejamos preparados para esse enfrentamento (atenção: não é um passeio, é um embate; um enfrentamento, portanto) é preciso que nos municiemos de aptidões e ferramentas (armas) que nos possibilitem chegar a nosso melhor destino sem tantos percalços e sofrimentos. Desde logo é bom que se saiba que não há meio de fazer essa travessia impunemente. Haverá dor, momentos de desânimo e até de desespero.
É preciso, portanto, estar preparado para não sucumbir a eles. A missão precisa ser cumprida para que não naufraguemos no rio das frustrações. Um médico frustrado é um perigo para os que dele dependem para recobrar a saúde.
A medicina, alerta Ivo Pitanguy, nome maior de nossa cirurgia plástica, "nos causa terríveis incômodos. Mas, paradoxalmente, o homem que pode escolher seus incômodos é um homem livre". Em primeiro lugar, se pergunte: quero mesmo ser médico? Por que motivo? Meus motivos são consistentes, tenho convicção deles? Estou disposto a estudar medicina enquanto continuar atuado? Estou disposto a abrir mão, em muitas ocasiões, de minha privacidade, de meu laser, de meu repouso, de meu bem-estar? Se todas as respostas foram positivas e você for uma pessoa do bem, que goste de gente, então você é um bom candidato a ser um médico como deve ser. Vá em frente! Do contrário, é melhor optar por outra profissão. Você sofrerá muito e fará muita gente sofrer. Desista!
Considerando-se em condições de estudar medicina, lembre-se de que o médico que você será começa a se plasmar desde o primeiro período de aulas na faculdade. As matérias ditas básicas, consideradas chatas e até rejeitadas por alguns, saiba que são o alicerce que sustentarão sua formação. Relegá-las, não lhes dando a atenção necessária, é um erro que repercutirá em todo seu aprendizado e, depois, em sua prática profissional. A fragilidade do alicerce, como se sabe, coloca em risco tudo que sobre ele se assentar. Lembre-se de que você está se preparando para ser um profissional, portanto seus conhecimentos precisam ser bem assimilados. Tidos em mente sempre que deles necessitar. Aqueles que estudam somente para obter notas que lhes garantam aprovação nas provas, primam pela superficialidade. Logo, não sedimentam adequadamente o conhecimento. São os estudantes de véspera de exame, que viram a madrugada tentando recuperar o tempo que não estudaram. São imediatistas. A seguir as provas, o pouco do que acharam que aprenderam é esquecido. É preciso saber colocar em prática o que se aprendeu na teoria. Há profissionais que sabem e até verbalizam bem seus conhecimentos, todavia deixam muito a desejar quando tentam transformá-los em atos. Faltou colocar a mão na massa, ou seja: no enfermo. Freqüentar serviços médicos de qualidade é fundamental. Por vezes é mais difícil desaprender que aprender. Quem cria vícios, aprendidos geralmente em pronto-socorros e hospitais sem compromisso com a qualidade, terá dificuldade em se ver livre deles. Procure separar o joio do trigo, identificando onde e com quem vale pena buscar conhecimentos.
Hipócrates (460-377 a.C.), nos primórdios da medicina científica, escreveu: "Há, verdadeiramente, duas coisas diferentes: saber e crer que se sabe. A ciência consiste em saber; em que crer que se sabe reside a ignorância". Saiba, desde logo, que não se aprende medicina tão-somente nos textos médicos, Pedro Nava (1903-198), médico e escritor mineiro de nomeada, escreveu: "Medicina, antes de mais nada, é conhecimento humano. E este está também nos livros de patologia e clínica como na obra de Proust, Flaubert, Balzac, Rabelais, poetas de hoje e de ontem, nos modernos como nos antigos".
É, portanto, indispensável para a adequada formação profissional, que o médico tenha cultura humanística. Só assim terá como vislumbrar os múltiplos aspectos que envolvem o ser que vai tratar. A formação predominantemente somática e mecanicista deixa uma lacuna vital na concepção dos estudantes de medicina acerca dos humanos. Seres que não máquinas que podem ser consertadas sem a concepção do todo. "É necessário que o aparelho formador dê forte ênfase à formação humanística do médico", enfatizou Waldir Paiva Mesquita, quando presidente do Conselho Federal de Medicina.
Os aspectos psicológicos, que ou são causas ou repercutem no enfermo, devem merecer, sempre, a cuidadosa atenção médica. A relação médico-paciente, que deveria ser motivo de reiteradas abordagens, não recebe a atenção devida na grade curricular das faculdades de medicina. Há professores que sequer fazem referência ao tema, este que é absolutamente essencial para encurtar o caminho que leva a melhora e a cura dos pacientes. Platão (428 ou27/347 a.C.), filósofo grego, há 25 séculos, escreveu que: "O maior erro dos médicos é tentar curar o corpo sem procurar curar a alma. Entretanto, corpo e alma são um e não podem ser tratados separadamente".
O médico precisa ter consciência de que ele próprio pode ser remédio ou veneno conforme se conduzir frente aos doentes que trata. Caso se relacione adequadamente com seu paciente, despertará nele a confiança que funcionará como efeito placebo. Antes mesmo de o tratamento por ele prescrito ter condições científicas de provocar resultado satisfatório, o enfermo já apresentará melhoras. Isto precisa ser aprendido nos bancos da faculdade e praticado desde o primeiro paciente atendido. Portanto, um importante fator do processo de cura é o próprio médico, conforme deduziu o famoso médico Paracelso (1493-1541): "A personalidade do médico pode funcionar mais poderosamente sobre o paciente que as drogas empregadas". O médico que você será, futuro colega, dependerá, em essência, de como você é, de seu perfil psicológico, de seu jeito de ser. Há pessoas que têm erros essenciais de caráter, de conduta. Estas jamais deveriam escolher a medicina como profissão. Mas, infelizmente, nenhuma profissão está livre delas.
É impossível ser um bom médico sem ser um bom cidadão. É impossível ser um bom médico sem ser responsável, disciplinado, estudioso, observador atento. É impossível ser um bom médico sem amar a medicina, sem gostar de gente, sem cultivar a solidariedade, a compaixão pelo próximo. O bom médico precisa ser, visceralmente, um benfeitor. Ou será apenas um mero receitante de tratamentos. Jamais um verdadeiro médico. E um médico que não é verdadeiro, é melhor que não seja médico. Pelo bem da humanidade. Pense nisto e decida que médico você será.

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